“É urgente criar [...] um espaço onde todos tenham voz, independentemente daquilo que possam ser, coisa difícil para uma sociedade que se habituou a caminhar às voltas do seu umbigo e que apenas sabe relacionar-se com os outros a partir de rótulos outorgados pelo preconceito”
(Frei Fernando Ventura).
A universitária Mayara Petruso, foi condenada a 1 ano, 5 meses e 15 dias de reclusão, por ter postado, em 2010, no Twitter: “Nordestino não é gente. Faça um favor a São Paulo: mate um nordestino afogado”. Mas, a pena foi convertida em multa de R$ 500 e prestação de serviços comunitários. Longe de ser uma ação individual e inconsequente de discriminação, como possa parecer, este incidente expõe algo secular, por vezes transversal e muito sério. Certamente, não se resolve com essa reprimenda educativa, mesmo que coerente e justa, ou por meio do simples orgulho de ser nordestino.
Tal convocação assassina, anunciada pela jovem paulistana, torna-se emblemática, pois denuncia um desejo que está num contexto social mais amplo, brota do terreno fértil da discriminação que é cotidianamente adubada no coletivo da sua região. Segundo Bauman (2011a), o ressentimento é uma descarga, um subproduto das configurações sociais que põem os interesses em conflitos e seus portadores em luta propensa a produzir: humilhação (negação da dignidade), rivalidade (estado da competição) e a ambivalência temerosa.
Embora, como é sabido, o nordestino tenha contribuído para construção de São Paulo, sua presença nessa megalópole sugere incômodo, ele é o outro, o inimigo, cuja força não foi antropofagicamente absorvida, mas engolido inteiro, vindo de uma região do Brasil que, de tão “indigesto”, sugere não ser brasileiro, mas, um estranho na sua própria pátria. Para Bauman (2011b), vomitamos os portadores de perigos, mantemos fora dos limites da sociedade; colocamos no exílio ou em enclaves vigiados, para que possam ser seguramente encarcerados sem esperança de escapar.
Mas, mantido sob o olhar vigilante e na segura distância periférica, não se deixa de retirar os benefícios daquilo que se tenta regurgitar. Os circuitos internos de TV não só protege dos invasores, mas também do próprio staff que cuida da integridade física dos patrões e dos seus patrimônios. Essa gente que, quase sempre, é obrigada a negar que mora na favela etc., como se fosse possível que residisse na Vieira Souto (Silva, 2010).
A manchete explicita um paradoxo, o agente que discrimina não é “ignorante”, mas uma estudante. Cadê a célebre sensibilidade feminina? Quem estuda discrimina, então para que estudar serve? Sua atitude deixa claro que não aprendeu nenhuma lição de humanismo, de aceitação da diversidade cultural, de que não tem noção ou faz questão de desconhecer os problemas econômicos que obriga o emigrante nordestino deixar sua terra, sua família, para se aventurar no Sudeste do país. Seu êxodo não é para viver de brisa ou numa espécie de Shangri-la, mas, para lutar pela sobrevivência, por meio do trabalho duro e honesto, por uma condição de vida digna para sua família.
Sendo Mayara Petruso da área do Direito, parece esquisito que, ao colocar seu chamado de extermínio étnico, em rede social acessada por milhões de pessoas, não tenha sido capaz de imaginar que isso pudesse implicar em algum tipo de sanção! Essa amnésia coroa o triplo fracasso das escolas, primária, secundária e, também, do dito ensino superior. As escolas não estão ensinando ou estão falhando no seu papel de formar cidadãos para o exercício da cidadania, de respeito aos semelhantes, às minorias, aos vulneráveis e outros. Na visão de Sertório (2001), continuam a ser alvo do racismo, os negros, os ciganos e os brancos pobres que foram marginalizados, empurrados para a miséria pelo capitalismo selvagem e pela expansão do imperialismo ganancioso que se chama de globalização.
A presença do estrangeiro introduz incerteza, é fonte de incessante ansiedade, e, em geral, de uma enrustida agressividade que, de tempos em tempos, se irrompe (Bauman, 2011c). A seca do sertão nordestino é, por demais, conhecida, assim, o desejo da jovem de matar nordestino não parece suficiente, é acompanhado pelo apetite perverso de ir mais além. Isto é, numa espécie de vingança ou humilhação, de não apenas consumar o ato de morte, mas torná-lo macabro, por afogamento, ironicamente no líquido faltoso na região que, a priori, o fez vítima como retirante. O gozo de poder zombar do “atrevimento” nordestino de encharcar o Sudeste com sua populosa presença. Uma lição radical e um desestímulo para outros, para ficar por lá, morrer na caatinga estorricado jeito gado, e não mais ousar invadir ou poluir as paisagens do maior centro financeiro do país.
Nessa concepção nazista, “nordestino não é gente”. Assim, fomenta-se uma mudança de condição que autoriza matá-lo, e sem culpa, porque não têm vísceras e nem um coração que pulsa por um sonho. Nessa perspectiva, nordestino deve ser um inseto. Para Mayara Petruso, humanos, certamente, são apenas os paulistanos e seus vizinhos do Sudeste e do Sul. Parceiros que, igual ou similar a sua pessoa, devem se creditar: objetivos, pós-modernos, mentes abertas e arrematadas por um enorme senso de justiça. Não é esse o discurso da elite endinheirada ou cultural? No entender de Janina (citada por Bauman, 1998, p.237), “a coisa mais cruel da crueldade é que desumaniza suas vítimas antes de destruí-las”. Em suma, torna objeto, suga do indivíduo sua essência de humano, e assim fica mais fácil de liquidá-lo. Essa estratégia ou mecânica mental é a mesma que guia a discriminação contra negro, descaso ou abandono de idoso, ódio e matança de homossexual.
Na ótica do discriminador, nordestino é como se fosse estrangeiro, com quem não se deve misturar. Um sintoma de “mixofobia” 1, em decorrência do qual, “expulsando os estrangeiros [...], fazemos uma espécie de exorcismo dos fantasmas aterradores da insegurança que nasce da incerteza, ao menos por um instante: queimamos no fogo (neste caso, afoga na água), pelo menos em efígie, o monstro fugidio que nos irrita e horroriza” (Bauman, 2011c, p.190 - grifo nosso). Segundo Ventura e Franco (2011, p.78), “ao não conhecer, rejeitamos; ao rejeitar, isolamos; ao isolar, criamos impossibilidades de convivência pacifica e alimentamos a lógica das pressões a todos os níveis. Neste ponto entra a prepotência das maiorias”.
O mito ariano tem como referência o sol, oposto da noite, daí a suástica (Lacoue-Labarthe e Nancy, 2002), a claridade simbolizada, no projeto de Adolf Hitler, uma sociedade limpa das raças (Bauman, 2011c). Do contrário, no símbolo do taoismo os opostos se harmonizam, e cada oposto detém uma pequena porção do outro. Uma vez que, “o homem ingressa no mundo ético pelo medo e não pelo amor” (Ricoeur citado por Bauman, 2011c, p.83). O mito da pureza liberta o desejo de humilhar o outro que se julga inferior, imoral e fora do que se enquadra a maioria. Logo, é considerado impróprio para existir, pois o enxergam como causa das mazelas do entorno, e por isso mesmo determina que esse indivíduo seja banido da fase da terra. Essa execução poderá ser ostensiva ou de modo simbólico.
Este episódio deixa implícito que estar em pauta o mito da pureza ou da superioridade, os cidadãos do Sudeste do país não devem se misturar, em particular, com as indesejáveis do Nordeste. Para Lacoue-Labarthe e Nancy (2002, p.49), “o mito é, assim, a potência de reunião das forças e das direções fundamentais de um indivíduo ou de um povo, a potência de uma identidade subterrânea, invisível, não-empírica”. No Rio de Janeiro, por exemplo, todo nordestino é chamado de Paraíba, e em São Paulo, nordestino é tido como baiano. Isto é, com a intenção de desqualificar, os nordestinos são colocados no mesmo pacote, seja para estereotipar o baiano, como preguiçoso, ou o paraibano, como matuto, ignorante e agressivo.
O quadro discriminatório também é reforçado pela Televisão que, em geral, nas novelas faz do nordestino os tipos mais caricatos. A família e a escola não mais são os mentores da juventude, é o cinema e a televisão que, nos dias de hoje, assumem esse papel. Assim, naturalizam atitudes hostis contra os “nortistas”2. A jovem Petruso não avaliou as consequências da sua convocação, devido à intolerância, quase generalizada, contra nordestino. Talvez, tenha pensado que, do contrário, ataria os elos para concretizar seu intento: a tarefa da limpeza ou higienização étnica, que caberia a cada paulistano. De fato, em termos práticos, isso já se realiza numa escala menor, mas, de modo imensurável no campo simbólico. Neste contexto, “ser uma pessoa moral exige muita força e elasticidade para suportar as pressões e as tentações de se retirar das responsabilidades conjuntas” (Bauman, 2011b, p.386). Ou seja, é mais fácil ou mais cômodo aceitar essa corrente do que questionar e, assim, colocar-se como obstáculo.
Qualquer sinal do estigma torna o sujeito estigmatizado um potencial subjetivo de ameaça, do qual, imediatamente, devem se afastar. Segundo Goffman (1985), o estigma é interpretado, pelo senso comum, como inferioridade de caráter ou fraqueza moral. Quando o estigma é conhecido ou, de imediato, reconhecido, não mais o percebem com alguma qualidade, e esse indivíduo passa a ser descreditado. Assim sendo, o preconceituoso não tarda a encontrar ou forjar motivos para excluir, perseguir e maltratar o estigmatizado por meio de insultos sutis, de constrangimento à conduta extrema de violência física. Portanto, ainda que desejável, parece utópico cobrar uma congruência de que: “se existe um nível facultativo da ética dos negócios, há também um nível obrigatório e incondicional, inviolável. Trata-se dos princípios últimos da moral, que prescrevem o respeito às pessoas, a proteção à vida, o respeito à dignidade dos outros” (Lipovetsky, 2004, p.61).
A discriminação é uma metástase social que domina todo território nacional, é comum num mesmo Estado da federação, rivalidade entre suas cidades, região contra outra região, como é neste caso. Para se afirmarem, parece que só tem como parâmetro rebaixar o outro, supostamente mais frágil ou inferior. Porém, esse preconceito de âmbito interno se esvai na estupidez externa, no exterior, no qual brasileiro de qualquer região do Brasil, de alguma maneira, é vitima de discriminação. Isso porque, essa nacionalidade é vista de modo enviesado em grande parte do mundo. Em Portugal, por exemplo, depois dos africanos e dos ciganos, os brasileiros são os mais discriminados (Sertório, 2001), numa país que fala a mesma língua e que se diz irmão. Sem contar também que, na sua condição de latino, o brasileiro é discriminado em quase toda Europa.
O preconceito e a discriminação recaem sobre todo cidadão cujos signos da sua origem lhe remetem a um status social menor ou a nenhum status. O brasileiro preconceituoso do Sudeste tende, por exemplo, a aceitar o gaúcho por tudo que implícita: região próspera e por causa da descendência alemã, uma vez que a cultura germânica, apesar do holocausto, é valorizada. Isso funciona, praticamente, como garantia de simpatia gratuita. Do contrário, é verdadeiro, se discrimina nordestino por tudo que esse nativo representa: seca, carência material ou econômica, analfabetismo etc. No olhar ofuscado pelo preconceito, cada emigrante ou imigrante é uma cartografia precisa do seu torrão, ou seja, deixa de ser um indivíduo com singularidades e características próprias, e passa a ser tudo de bom ou de ruim de que se têm notícias, do seu lugar de origem, através dos meios de comunição.
Atualmente, “homens e mulheres têm tido a oportunidade de cometer atos desumanos sem se sentir eles próprios menos humanos” (Bauman, 2011b, p.265). Assim, a punição de Mayara Petruso, de algum modo é funcional porque retém, um pouco, a fúria da discriminação. Porém, o preconceito e o racismo nunca vão acabar, sutis ou explícitos estão impregnados nas atitudes cotidianas de convivência com os negros, gays, nordestinos e outros. Os preconceituosos precisam desses grupos, politicamente minoritários, como bodes expiatórios, da mesma forma que necessitam do oxigênio que retiram das camadas densas das suas vidas medíocres, para suportar suas angústias e frustrações, por vezes, em cima de cadáveres.
Para Sertório (2001, p.189), “a discriminação é racial, social e econômica e, [...] quem manda neste assunto é o lucro”. Diríamos que o lucro também pode ser entendido como o bem-estar advindo da exclusão do indesejado. Assim, só superficialmente, os indivíduos discriminados serão tolerados, porém, raramente aceitos e respeitados. Sempre estarão suceptivos aos efeitos corrosivos e subjacentes numa aparente igualdade de direitos. Mas, essa fobia, de uma forma ou de outra, nunca vai parar de atuar. O dominante ou quem se julga superior, de certo maneira, apadrinhado pelo Estado, toma a liberdade de discriminar, assim alivia seu mal-estar usando essas pessoas como bodes expiatórios. Segundo os entrevistados de Sertório (2001, p.189), “o verdadeiro racismo que há que combater com prioridade é aquele que parte das instituições e das leis que lhes negam o estatuto de cidadão de pleno direito”.
A história de todas as experiências humanas prova que ninguém, definitivamente, está civilizado, um pequeno-burguês pacífico pode tornar-se, em certas condições, um carrasco, isso porque, é fácil incitar pessoas que não tem índole má a perpetrarem atos de violência ou de maldade (Morin, 2011; Bauman, 2011c). Mas, segundo Shipman (1996), e na diversidade que está o nosso maior dom e o nosso maior desafio. Assim, quanto mais se perde a capacidade de tolerância3, menos se é capaz de apreciar a vitalidade, variedade e pujança da vida urbana (Bauman, 2011c).
Finalmente, o brasileiro que estrangeira seu compatrício nordestino, é o mesmo que acolhe forasteiro dos mais diversos e distantes rincões do mundo. Na capital paulista goza de algum status, exatamente, por ser estrangeiro e vive como os nativos. Seja pela curiosidade que possa despertar o novo, seja como resultado de possíveis resíduos colonialistas, intercâmbio cultural ou interesse financeiro, o fato é que brasileiro sempre é muito cordial com gringo. Diferente de outros povos que, em nome da “identidade nacional”4 (Sertório, 2001, p.189), apontam sua metralhadora discriminatória e excludente para o estrangeiro, o brasileiro estigmatiza sua gente dentro da sua próprio pátria. Decerto, “é a devastação moral, não o progresso moral, a consequência da espera para que os mercados ‘desregulamentados’ ‘façam aflorar o melhor das pessoas’” (Bauman, 2011b, p.352 - grifos do autor). Enquanto isso, o Brasil se encerra em mais uma das suas grandes e perversas contradições.
NOTAS:
- Palavra derivado do grego mixis (mistura) e phobos (fobia, medo intenso). (NT In Bauman, 2011c, p.19).
- Muitos dessa região, para simplificar ou por ignorância, chamam o nordestino de nortista, como se o mesmo fosse da região Norte.
- Bauman (2011c, p.184 - grifos do autor) ressalta que, “com grande dificuldade, a nova definição de direitos humanos sedimenta, no melhor dos casos, a tolerância; ainda é preciso consolidar a noção de solidariedade”.
- Para Dubar (citado por Bauman, 2011a, p.25), “a identidade não passa de um resultado ao mesmo tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo [...] que de uma só vez constroem os indivíduos e definem as instituições”. Mas, a “identidade nacional”, segundo Giddens (1999, p.116), “só pode ter uma influência benéfica se for tolerante em relação à ambivalência, ou à nacionalidade múltipla”.
Referências
Bauman, Z. (1998). Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Bauman, Z. (2011a). A ética é possível num mundo de consumidores? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Bauman, Z. (2011b). Vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Bauman, Z. (2011c). 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Giddens, A. (1999). Para uma terceira via. (1a edição). Lisboa: Editorial Presença.
Goffman, E. (1985). A representação do eu na vida cotidiana.(3a edição). Petrópolis: Editora Vozes.
Lacoue-Labarthe, P., & Nancy, J-L. (2002). O mito nazista. São Paulo: Iluminuras.
Lipovetsky, G. (2004). Metamorfoses da cultura liberal: ética, mídia e empresa. Porto Alegre: Sulina.
Morin, E. (2011). Cultura de massas no século XX: espírito do tempo 1: neurose (10a edição). Rio de Janeiro: Forense Universitária.
Petruso, M. (2012). Justiça condena universitária paulista Mayara Petruso, que ofendeu nordestinos no Twitter. Disponível em: http://tudonahora.uol.com.br/noticia/brasil/2012/05/16/187873/justica-condena-universitaria-paulista-mayara-petruso-que-ofendeu-nordestinos-no-twitter (17/05/2012).
Sertório, E. (2001). Livro negro do racismo em Portugal. Lisboa: Edição Dinossauro.
Shipman, P. (1996). A evolução do racismo: diferenças humanas e uso e abuso da ciência. Lisboa: Círculo de Leitores.
Silva, V. G. (2010). Nuances dos testes psicológicos e algumas inquietações pós-modernas. João Pessoa: Ideia.
Ventura, F., & Franco, J. (2011). Do eu solitário ao eu nós solidário (3a edição). Lisboa: Verso da Kapa.