Em um episódio dos Simpsons, Bart e Lisa, debruçados sobre a pia do banheiro acompanham a corrida entre um tubo de pasta de dente e um vidro de xampu, apostando qual dos dois vai afundar primeiro no redemoinho que se formou ao retirarem a tampa do ralo. Lisa ganha a corrida, mas Bart diz que poderia ter ganho se a água tivesse girado no outro sentido.
Lisa então explica a Bart que "a água nunca gira no outro sentido. No hemisfério norte a água sempre gira no sentido anti-horário!, é o chamado Efeito de Coriolis". Bart, sem querer aceitar o fato da água obedecer ao que ele acredita serem as "leis da Lisa", passa a fazer ligações internacionais para diversos países do hemisfério sul perguntando as pessoas de lá em que sentido a água está girando em seus banheiros (veja o guia deste episódio). Quem assiste os Simpsons sabe que Lisa representa a voz da ciência. Infelizmente neste caso quem estava certo era Bart: embora seja verdade que por causa do efeito de Coriolis as marés e os ciclones giram no sentido horário no hemisfério sul e no sentido anti-horário no hemisfério norte, o mesmo não vale para os redemoinhos de água das pias das nossas casas.
O mito de que a água escoa nas pias de acordo com o hemisfério é provavelmente um do mitos científicos mais difundidos no mundo. Agora mesmo, enquanto escrevemos este artigo, a rede de lanchonetes McDonald's estampa nos papéis que usa para forrar suas bandejas várias informações curiosas sobre a água. Em meio a curiosidades científicas ("o corpo humano é formado por 70% de água") e outras nem tanto ("vampiros não gostam de água corrente") está lá, mais uma vez, a informação de que "a água escoa pelo ralo no sentido horário no hemisfério sul e no sentido anti-horário no hemisfério norte" (aliás a quantidade de desinformação científica neste folheto do McDonald's merecia um artigo à parte!). Há até mesmo um episódio de Arquivo X em que o mito de Coriolis é usado para justificar a paranóia de Mulder: ao investigar o assassinato de um adolescente, Mulder se convence de que alguma coisa está fora da ordem quando nota que a água do bebedouro da escola onde o garoto foi morto escoa no sentido horário, o quê, como ele explica para a cética Scully, desafia as leis da física.
O que é a Força de Coriolis?
Quando estamos sentados em um ponto de ônibus e vemos um ônibus frear observamos que os passageiros inclinam seus corpos para frente. Dizemos então, que essa tendência de continuar o movimento é causada pela inércia. Esta é uma lei da física, conhecida como primeira lei de Newton, ou Lei da Inércia, e diz que na ausência de forças, um corpo parado continua parado e um corpo em movimento retilíneo continua em movimento retilíneo. Mas e se nós estivéssemos no interior do ônibus no momento da freada? Neste caso não poderíamos dizer que a inclinação dos passageiros foi causada pela inércia, afinal sentimos claramente a ação de uma força nos levando para a frente, ou seja, não estamos mais na ausência de forças.
Veja como as situações descritas são diferentes: na primeira situação, o observador se encontra em repouso (sentado no ponto de ônibus) e observa um corpo (ônibus) em movimento acelerado (o ônibus freiando está acelerado negativamente). Na segunda situação o observador se encontra dentro do ônibus que frea, portanto também está acelerado. Acontece que as leis de Newton só podem ser aplicadas a fenômenos observados de um referencial em repouso ou em movimento em linha reta com velocidade constante (aceleração igual à zero), conhecido como referencial inercial; logo a primeira situação pode ser explicada usando-se as leis de Newton e o conceito de inércia. Já na segunda situação, o referencial é não-inercial - pois o observador possui aceleração - e não podemos explicar a inclinação dos passageiros para frente usando a lei da Inércia. Este tipo de "força" que aparece em referenciais acelerados é chamado de força de inércia. Um outro exemplo do aparecimento de uma força de inércia é quando um carro faz uma curva e sentimos como se uma força nos empurrasse para fora, nos pressionando na parede do carro. Essa força que nos empurra para fora da curva é uma força de inércia conhecida como Força Centrífuga.
Um corpo em um referencial em rotação, portanto não-inercial, estará sujeito à ação de dois tipos de força de inércia, a Força Centrífuga que atuará na direção do raio para fora da curva e uma outra força que tenderá a desviar lateralmente o movimento do corpo, essa última conhecida como Força de Coriolis. Tal força foi batizada em homenagem ao engenheiro e matemático francês, Gaspard Gustave de Coriolis, que em 1835 descreveu as leis da mecânica para um sistema de referência em rotação. Em seus estudos Coriolis verificou que em um sistema em rotação (como é o caso da Terra) há uma força que afeta o movimento de um corpo de maneira diferente no hemisfério sul e no hemisfério norte. Devido à forma esférica da Terra, a Força de Coriolis possui um sentido no hemisfério sul e sentido oposto no hemisfério norte, sendo de intensidade nula no Equador. É por causa da força de Coriolis que grandes camadas de ar entram em movimento de rotação originando os ciclones; ciclones que giram no sentido anti-horário no hemisfério norte e no sentido horário no hemisfério sul. Os movimentos das correntes oceânicas também são resultado da ação da Força de Coriolis, bem como os desvios sofridos por projéteis em trajetórias de longo alcance.
Então as pessoas pensam: "se vale para os ciclones e para as redemoinhos das correntes oceânicas deve valer para os redemoinhos nas pias dos banheiros". Mas isso não é verdade. No caso da água descendo pelo ralo da pia a Força de Coriolis é muito pequena já que a massa de água e a velocidade de escoamento também são muito pequenas. Só para se ter uma ideia, se a água numa pia de tamanho normal estivesse rodopiando a uma velocidade de 3600 km/h (que seria um absurdo!), ainda assim a aceleração provocada pela força de Coriolis seria 66 vezes menor que a aceleração da gravidade! Sendo tão pequena, a força de Coriolis é praticamente desprezível frente às outras forças que atuam num tanque como o atrito e os efeitos causados pela forma e textura das paredes do tanque, bem como o movimento residual da água.
Mesmo assim não é impossível ver o efeito de Coriolis em uma pia, só é muito, muito difícil. A água deve repousar por uma semana ou mais em uma cuba especialmente preparada para eliminar qualquer interferência geométrica e o furo pelo qual a água escoa deve ser extremamente pequeno para que a vazão seja o mais lenta possível (demora horas para que a força de Coriolis comece a provocar algum desvio sensível).
Uma experiência interessante que pode ser feita facilmente em casa para comprovar que o mito é só um mito foi proposta por John C. Salzsieder no artigo "Exposing the bathtub Coriolis myth" (revista "The Physics Teacher", volume 32, fevereiro de 1994): Pegue dois recipientes de aproximadamente 45x35x10 cm. Faça um buraco no fundo de cada recipiente e feche-os com uma rolha. Encha os tanques com água e, com o dedo, mexa a água no sentido horário no primeiro recipiente e no sentido anti-horário no segundo recipiente. Espere até que a água esteja completamente parada e retire as rolhas (pela parte de baixo do recipiente, para você ter certeza que não pertubará a água). Você verá que ao invés da água escoar no sentido horário nos dois recipientes como prevê o Efeito de Coriolis, o vórtice formado no primeiro recipiente escoará no sentido horário e no segundo recipiente escoará no sentido anti-horário! A explicação é que mesmo parada a água ainda guarda uma certa quantidade de movimento residual que, apesar de muito pequena, ainda é muito maior do que a força de Coriolis.
Por isso não é mera ignorância mas pura fraude o que alguns guias turísticos fazem na cidade de Nanyuki no Kênia. Esta cidadezinha está localizada exatamente sobre o equador e na falta de outras atrações turísticas, alguns guias especializaram-se numa espécie de "turismo científico". Um dos guias atravessa a linha do equador em direção ao hemisfério sul com uma cuba cheia de água e, tirando a rolha do fundo da cuba, mostra a platéia como a água escoa no sentido horário. Em seguida caminha uns 10 metros em direção ao outro lado da linha do equador e a platéia vê como neste hemisfério a água gira no sentido anti-horário. A demonstração termina com o guia mostrando, para deleite dos turistas, que com a cuba exatamente sobre a linha do equador a água escorre pelo ralo sem girar. Farsa completa.
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