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Planejando um Texto Narrativo

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O que faz um texto narrativo ser interessante, prender a nossa atenção e nos mostrar que forma um todo? Leiamos com atenção o exemplo abaixo para comentarmos, depois, e aos poucos, como se tece um texto:

Texto I

O primeiro beijo

Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor: Amor com o que vem junto: ciúme.

- Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar?

- Ele foi simples:

- Sim, já beijei antes uma mulher:

- Quem era ela? perguntou com dor:

Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer:

O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir- era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.

E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor; rir, gritar; pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.

E nem sombra de água. O jeito .era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engolia- a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede. enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.
A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio-dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.

E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou pôr instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, espera!: Talvez minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.

Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.

O instinto animal dentro dele não errara: na Cla inesperada da estrada, entre arbustos estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada.

O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.

De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga.

Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se sacia!: Agora podia abrir os olhos.

Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.

E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.
Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificado!; o líquido germinador da vida... Olhou a estátua nua.

Ele a havia beijado.

Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva.
Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.

Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar: A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.

Até que, vinda da profundeza de seu se!; jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...

Ele se tornara homem.

(Clarice Lispedor - in Felicidade Clandestina)


Depois de ler (melhor reler...), observe bem: há uma sequência de fatos que vão sendo costurados uns aos outros e que formam o que chamamos de "todo" narrativo. O enredo vai se fazendo aos poucos, passo a passo, alinhavado nos acontecimentos, entretecido de pequenas partes que convergem para um só núcleo, amparado no tempo e seu fluxo de continuidade.

Como um tapete num tear

Escrever uma história, uma narrativa, é como tecer um tapete num tear: os fios ficam todos disponíveis, é preciso usá-los a todos, um a um e na ordem certa para desenhar o que antecipadamente se planejou.

Caso deixemos os fios soltos, os assuntos soltos, corremos o risco dos desenhos do tapete não saírem como o planejado, e a história, pobre dela, sem pé nem cabeça.

É isso o que, quando você escrever, deve estar pronto a enfrentar: cuidar para que sua narrativa seja um todo. E nada de ficar pensando que ela tenha que ter, certinhos, começo, meio e fim. Às vezes, uma boa história começa pelo clímax. Não há ordem para as três partes se apresentarem, mas há, sem dúvida, uma preferência pelo tal "começo/meio/fim";

No texto acima, perceba:

a) existe uma situação inicial que se apresenta: a namorada pergunta, enciumada, se ela é a primeira mulher que o rapaz beijara;
b) ele titubeia na resposta: sim, houvera antes uma outra mulher a quem beijara; ela pergunta quem era a mulher;
c) e as lembranças, nesse momento, são tomadas pelo narrador onisciente, em terceira pessoa, que invade a memória da personagem e traz, em sequência dos acontecimentos, um fato antigo;
d) uma excursão de meninos subia a serra;
e) ele estava com sede e juntava saliva na boca;
f) ele pressentia que havia água por perto;
g) pararam num chafariz;
h) ele colou os lábios no fio de água, bebeu até saciar; i) ao abrir os olhos viu que era uma estátua de mulher o
chafariz e que era da boca desta mulher que jorrara a água;
j) sentiu algo que também jorraria dele;
k) transformou-se em homem.

Perceba: esta história vai para além de si mesma, é uma metáfora e revela o instante em que o menino tem o primeiro orgasmo: "jorrou de uma fonte..." O narrador, em linguagem magicamente bela, nos conta o instante da transformação do menino em homem.
Mais: você verifica, ainda, que tudo converge para um fato que o narrador toma como um pretexto aparentemente banal para iniciar: quem fora a primeira mulher beijada?

Não acredite que alguém se sente diante de uma folha em branco ou de uma tela em branco e "faça" nascer a história do nada. Embora você possa acreditar em "inspiração", é preciso saber que todo texto deve ser planejado: parte a parte, ação a ação.

Vamos aprender, então, a planejar um texto narrativo.

Planejando, planejando...

Em primeiro lugar, é bom saber: nós vamos planejar um texto e é bom que não se confunda isso com simplesmente fazer um rascunho.

Por que planejar?

Em primeiro lugar, porque você terá que ter domínio sobre o que escreve, a fim de que se sinta confortável para dar continuidade à história; em segundo lugar, porque você poderá ser surpreendido por um fecho que destoa do corpo do texto, uma linha de enredo que se embaraça e... some de repente, deixando um "branco".

Tal como um engenheiro que projeta um prédio, um avião, um aeroporto ou uma máquina, tão diferentes entre si, você também pode - e deve! - planejar o que Vai escrever.

Para tanto, simulemos um modelo de enunciado semelhante ao da Unicamp. E, a partir dele, começaremos a planejar.

Tema

Abaixo, há elementos para a construção de um texto narrativo em que se tematiza o relacionamento entre duas pessoas, o cruzamento de duas vidas. Sua tarefa será; desenvolver essa narrativa, segundo as instruções gerais.

"(...) as vidas não começam quando as pessoas nascem, se assim fosse, cada dia era um dia ganho, as vidas principiam mais tarde, quantas vezes tarde demais, para não falar naquelas que, mal tendo começado já se acabaram.(...)Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?"

(José Soramago, Jangada de pedra, Ed. Record, p. 16)

Uma cena

  • Uma mulher, triste, lê o texto que você encontrará; disponível mais abaixo, pensa num homem que partilhou a vida dela anos atrás.
  • O texto é antigo, escrito para ela há muito tempo. ! . Está frio e chove lá fora, a casa está silenciosa e mulher chora.
  • O homem, sentado diante da escrivaninha do escritório, abre o computador e busca um arquivo: aparece na tela a amante ruiva, sorridente, feliz.
  • Um homem se olha no espelho e não se reconhece: tem rugas, cabelos brancos. ...
  • Um homem chora de saudades.
  • Uma mulher termina a leitura do texto, dobra o papel impresso e tenta reconstituir a história que viveu.
  • Um homem soluça de dor, indagando-se onde estaria a mulher ruiva que fez parte de sua vida.
  • Uma mulher se encolhe, se acomoda no sofá, imaginando onde estaria o homem que fez parte de sua vida. Ela também chora.

O texto lido pela mulher era o seguinte:

Nós temos histórias, segredos e medos.

De nos perdemos um do outro o maior deles. Poemas que tu me escrevestes temos, onde sou tema, sem rima, puro sentimento, com a cadência desusada do bater do teu coração.

Nós, entretanto, gostamos da chuva, e palavras temos ~ que inventamos para nós. E jeitos e formas que criamos, e nossas mãos que reconhecem o contorno dos nossos rostos, ainda que cegos estejamos. Mundo que construímos para nós temos sem alicerces visíveis, mas firme. Há um lugar em que plenamente vivemos, nos temos.

De nós há uma parte maior que fica sempre em poder do outro, em secreto depósito, tal como protegido numerário suíço, que carregamos sem sentir o peso.

Há um imaginário chá de jasmim que juntos tomamos, há as histórias de nós que nos contamos, há o que juntos comemos, há o alimento que nos damos na boca da alma.

Há o que mutuamente sabemos, que só nós sabemos sobre nós, que antes não sabíamos.

Amigos, parceiros, amantes, namorados loucos, somos tudo. Há os passeios aéreos noturnos que fazíamos ; de mãos dadas. Voávamos, porque também podemos voar sempre pudemos, embora disso não soubéssemos.

Um velho, um jagunço, uma mulher enleada nas primitivas cores dos panos, ladridos de cães nos protegendo, uma expressão arcaica que se refere ao tempo, um criado negro fiel e perigoso. Um cavalo, uma janela a ser saltada, um encontro num elevado um conquistador barato, um amor fugidio num corredor deserto, um encontro numa estrada, um beijo na avenida movimentada de domingo.

Na rua andamos lado a lado, levando os livros que escolhemos juntos, medindo cada passo para não nos abraçarmos, a vontade de enlaçar teu ombro, vontade de furtar um beijo.

Rimos.

Há uma mistura de realidade e sonho que já não mais distinguimos, e nem queremos.

Há um pacto que subscrevemos.

Há a alegria de nos vermos. Há uma saudade que não passa, que ultrapassa tudo o que de razoável entendemos. Por conta disso inventamos o eterno abraço de quinze segundos, a efêmera fotografia no espelho, o beijo com a porta do carro aberta, o telefonema, o bilhete eletrônico, a troca de pequenas coisas, símbolos que nos identificam. Estradas que percorremos em comboio. As frases que extraímos dos livros. A nossa posterior avaliação de desempenho, na qual analisamos os nossos sentimentos, sensação por sensação, cada contração de fibras, e nos descobrimos mais e mais.

E nos surpreendemos mais e mais com a nossa imensa capacidade de amar antes duvidosa.

De toda forma nos amamos, com cem por cento de risco de ser para sempre.

Instruções gerais

É necessário que você use todos os elementos da cena que leu para construir as duas personagens, o enredo, o cenário e o tempo de sua narrativa.

O foco narrativo deverá ser em 3ª pessoa e o narrador deve, dada a natureza da cena, ser onisciente.

O desenvolvimento do enredo, a partir da cena escolhida por você, deverá levar em consideração a citação do escritor José Saramago e estar atentamente ligado ao texto que a mulher leu.

Não será preciso que você utilize todos os elementos do texto escrito pelo homem.

Aprendendo a planejar

Verifique: quando um texto narrativo é pedido no vestibular, vem acrescido de uma série de exigências para que seja desenvolvido. Por isso, é necessário que aprendamos a planejá-lo. Veja o caminho, passo a passo:

1. Em primeiro lugar, leia atentamente o enunciado. Sublinhe um a um os eixos de exigência e, antes de começar a escrever, releia o enunciado e verifique novamente cada item, principalmente não se esqueça de verificar qual é o foco narrativo que se exige.
2. Perceba: o tema anuncia que você deverá escrever sobre o entrelaçamento de duas vidas.
3. Na citação de Saramago, preste atenção: "as vidas principiam mais tarde, quantas vezes tarde demais, para não falar naquelas que, mal tendo começado já se acabaram.(...) Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?" Aqui, você encontrará também uma espécie
de norteador do texto que escreverá: anuncia- se uma história que poderia ter sido. Será você a escrever esta história...
4. Agora, preste muita atenção e não perca nenhum dos aspectos que terá de utilizar: um homem, uma mulher, ambos tristes, perdidos um do outro. Ela lê um texto que ele escreveu para ela; ele olha, nos arquivos do computador, uma foto. Especule, imagine. A foto é de outra mulher que os afastou? Ou a foto é dessa mulher que chora?
5. Ambos não sabem mais um do outro, perderam-se. Por que motivo isso aconteceu? Você seria capaz de escrever em que circunstâncias isso ter-se-ia dado?
6. O homem está envelhecido, o que escreveu a ela é texto antigo; portanto, está envelhecendo também esta mulher, não se esqueça dos detalhes.
7. O texto que você lerá, escrito por ele, tem características peculiares: é uma espécie de inventário do que eles são um para o outro (são, porque, por ocasião da escritura, estavam juntos).
8. Releia o texto, tire dele os componentes, cada um, para sua história: tente imaginar por que ele inicia dizendo que têm histórias, segredos e medos.
9. Veja isso: "De nos perdermos um do outro o maior deles". Observe que isso aconteceu de verdade, perderam-se um do outro.
10. E mais: você terá que escrever em terceira pessoa, como narrador onisciente, o que permitirá que entre na intimidade das personagens, que revele o que cada um deles pensa, sente e sofre.

Só depois de vasculhar tudo isso, estar atento a todos esses componentes, é que poderá planejar passo a
passo o seu texto.

Devagar, passo a passo...

Para começar a tecer seu jogo, é preciso usar a imaginação. Pegue um papel e escreva o que vai auxiliá-lo a construir a sua história:

1. Quem são essas personagens?
2. Você dará nome a eles ou vai preferirá metaforizá-los, negando-lhes uma identidade, ao mesmo tempo em que, por isso mesmo, eles passem a simbolizar todos os homens e mulheres na mesma situação?
3. Qual a história que viveram? Você pode observar que ela é forte, intensa, de extrema ligação de afeto entre dois seres. Então, qual a circunstância que os separou?
4. Deixe sua imaginação correr solta: que história é essa que poderia ter sido e que não foi?
5. O que teria impedido que os dois continuassem juntos e fossem felizes?
6. Qual o espaço que ocupam no momento em que nos são mostrados? Descreva-os, mas não os detalhe a ponto de perder parágrafos inteiros com eles.
7. Qual o tempo que você focalizará? Voltar o tempo a um início que você não conhece, mas presume, pode ser um bom começo.
8. Por que ambos estão sozinhos?
9. Associe a chuva de que ele fala à chuva do espaço que a mulher habita.
10. Observe: quando a mulher dobra o papel e tenta reconstituir a história que viveu, você poderia, como narrador em terceira onisciente, tomar uma carona nessas lembranças.

E agora, imagine como começar.

Você pode ter em mente uma história mais ou menos simples com relação à cronologia e tecê-la diacronicamente: começo, meio e fim. Mas pode também preferir começar pelo clímax, o ponto mais alto da narrativa e depois, em flash-back ou digressão, oferecer toda a história.
Cuide da linguagem, da coerência entre as partes, isso também é muito importante.

Não há nenhuma restrição quanto ao tamanho de uma narrativa no vestibular, mas é claro que você deverá preferir não se estender muito, como num conto, a fim de que seu texto não se perca em um emaranhado de situações que, posteriormente, tomem-se incontroláveis.