“Todos nós somos ciumentos em maior ou menor grau. A diferença está em como cada um encara este sentimento” (Willy Pasini).
O ciúme está presente nas mais diversas interações humanas, mas tem recebido pouca atenção enquanto objeto de estudo. Talvez, por não estar inserido na categoria das emoções “primordiais”. O verbete “ciúme” vem do latim zelumen (celumen), e tem sua origem na raiz grega, zelos, que significa fervor, calor, ardor ou intenso desejo, e por sua vez fundiu os vocábulos inglês jealous (ciúme) e francês jalousie (ciúme) que, além de inveja, despeito, indica também veneziana, persiana. Estes últimos termos - especula o psiquiatra Nils Retterstol, da universidade de Oslo/Noruega - se devem ao fato de algum marido jaloux (ciumento) ter observado sua uma mulher por trás da jalousie (fendas horizontais uma sobre a outra), na intenção de surpreendê-la em intercurso sexual com outro homem.
Neste texto, o ciúme será focalizado, especificamente, na dinâmica do relacionamento conjugal. Na sua natureza paradoxal, quando moderado, o ciúme pode manter um casal comprometido. Nasio (2002) diz que “... não existe amor sem ciúme” (p.63), e o senso comum propaga que “o ciúme é o tempero do amor”. Mas o ciúme também pode expor os parceiros a situações extremas de perigo. Embora, menos frequente nos dias hoje, ainda assim, é o ciúme dos homens, mais do que das mulheres, que coloca em risco a integridade física, por vezes fatal, das suas parceiras. Quando em sua poção concentrada, o ciúme é conhecido como a síndrome de Otelo, ciúme psicótico, paranóia conjugal e síndrome do ciúme erótico.
Quando tomado pelo ciúme, o indivíduo desencadeia um complexo de emoções a exemplo da raiva, fúria, humilhação, medo, ansiedade, tristeza e depressão. A perseguição do ciumento é tão incômoda quanto desconcertante é ouvir do (a) parceiro (a) que ele (a) não sente ciúme. Isto pode ser interpretado como ausência de bem querer, mesmo que suas atitudes cotidianas contradigam essa fala, em outras palavras, mesmo que se diga da “boca para fora”. Uma vez que o ciúme é inerente ao relacionamento, lhe cabe ser mais bem administrado, porque sua falta ou seu excesso é altamente destrutivo para o equilíbrio do casal.
Alguns teóricos consideram o ciúme uma emoção oriunda da insegurança, que tem como base à baixa auto-estima, um sintoma de imaturidade ou defeito de caráter. Assim sendo, de acordo com essa posição, se espera do adulto de auto-estima elevada, de maturidade e solidez psicológica que não apresente esse sentimento. Este suposto indivíduo, com tais características, pode até lidar melhor com o próprio ciúme ou com situações provocativas que o outro procure despertar. No entanto, essa postura consiste num traço, mas não necessariamente em uma pré-condição para uma personalidade madura, integrada. Às vezes, aqueles que se mostram controlados, na realidade são pessoas travadas, isto é, encouraçadas, emocionalmente frias.
Socialmente se admite o apego às coisas materiais. Prova disso é que, em geral, somente se empresta, por exemplo, livros, cds, etc., a pessoas próximas que, de alguma forma, deixam implícito que terão cuidados com esses pertences. Nesse caso, o ciúme equivale ao zelo em preservar aquilo que se gosta ou que é útil. Então, por que não é igualmente aceitável que se tenha ciúme por pessoa(s)? Quando se trata de gente, o cuidado não consiste no empréstimo (embora tenham os adeptos do swing - troca de casais - que devem negociar os seus limites, e isso, de uma certa forma, é um zelo), mas, do risco potencial em decorrência da atração ou sedução mútua de uma ou de ambas as partes envolvidas, que ameaça a perda do objeto de amor. Enfim, o ciúme pelas coisas é encarado como natural, mas em relação à pessoa adquire uma conotação negativa. Parece vergonhoso se dizer ciumento, como se isto fizesse do sujeito um ser incompleto ou “menor”.
Em 1922, Sigmund Freud classificou o ciúme em três tipos: (1) Competitivo ou normal: essencialmente um sentimento de pesar, devido ao receio de perder o objeto amado, e da ferida narcísica, como também da inimizade contra um rival bem sucedido; (2) Projetado: deriva de pessoas cuja própria infidelidade real ou de impulsos que sucumbiram à repressão; (3) Delirante: é o sobrante de um homossexualismo que cumpriu seu curso e toma sua posição entre as formas clássicas da paranóia. Como se vê, o próprio Freud reconheceu a vertente normal do ciúme. Nesse sentido, Buss (2000) diz que “o ciúme se expressa em pessoas perfeitamente normais que não mostram nenhum sinal de neurose ou imaturidade” (p.40). Porém, “o ciúme às vezes surge porque se rejeita o próprio interesse sexual por outra pessoa e se projeta o problema no parceiro” (BRANDEN, 2002, p. 198).
Mas existiria um tipo ideal de relacionamento de casal? O modelo que está posto, com todas as dificuldades que lhe são peculiares, é o que se engendrou no mundo capitalista ocidental. Da mesma forma que, em outras culturas, com diferentes tradições, tem problemas comuns em sua estrutura. Nas histórias de ciúme, geralmente, se critica o comportamento do ciumento, e pouco ou nenhuma referência se faz às atitudes da denominada “a vitima”. Mira y Lopes (1947-1992), chega a dizer que a dialética do ciúme é sempre intra e não interpessoal. No meu entender, a visão desse autor teria fundamento se “a vitima” comprovasse sua generosidade emotiva, sua sensatez e sanidade mental.
É verdade que existem os ciumentos projetivos e delirantes que Freud descreveu, mas, os relacionamentos não ocorrem unilateralmente. Porém, as crítica e condenação não devem recair apenas sobre o “agressor” sem levar em conta as provocações diretas ou sutis do “agredido”. Há parceiros que não chegam a ser complicados ou adúlteros, mas que devido aos seus bloqueios afetivos não fluem satisfatoriamente na relação. As mulheres, devido a um “sexto sentido” mais aguçado, percebem rapidamente essa “não entrega”. Isso, por vezes, as deixa inseguras de que seus parceiros não as amam e, por isso, não passam cumplicidade, emoção na relação. Mesmo que independentes economicamente, elas tendem a não discutir com seus parceiros essa falta, pois receiam parecer infantis, exigentes ou por demais carentes.
Ninguém completa plenamente o outro. Tem que se aprender a lidar com essa falta e tentar desenvolver as características que julgam importantes para seu relacionamento e que estão, possivelmente, latentes no outro. A pressão social para o casamento e para a reprodução e/ou a carência afetiva conduzem as pessoas a uma convivência a dois para a qual, nem sempre, estão preparadas. Nessa perspectiva, quero chamar a atenção para um tipo facilmente identificável nesta realidade, que quase sempre é o pivô dos dramas de ciúme. É tipo homem inseguro que, apoiado pela cultura machista de direito irrestrito a esse gênero, procura se auto-afirmar se lançando em conquistas. Mesmo acompanhado, se insinua para outras mulheres, transformando, assim, seu sentimento de inadequação em ações perversas, grosseiras ou sutis que mina, em contrapartida, a autoconfiança da parceira.
Para este sujeito a “crise de ciúme” da mulher somente aparentemente o incomoda, pois funciona como um termômetro para que ele auto-avalie o quanto é “querido” e “desejável”. Uma coisa é admirar despretensiosamente os atributos sejam físico, intelectual ou espiritual de uma pessoa; uma outra é desejá-la e comunicar isso através de palavras ou, o que é pior nesse clima de produção de ciúme, com sinais ou expressões não verbais do tipo “olhar de alcova”. Esse indivíduo é um expert nessa modalidade, uma vez que os indícios dos lampejos libidinosos que ele emite, são instantâneos e subjetivos. Em caso de protesto, pode se defender indagando: “Eu falei ou fiz alguma coisa!?” E a parceira fica como ciumenta descabida, cuja reação serviu lhe apenas para denunciar sua “insegurança”.
Esse desrespeito à conta gota, quase sempre introjetado como mágoa, em breve será o ácido corrosivo da sua auto-estima. Esse tipo deixa implícita a mensagem de que é o homem, ou melhor, o macho, e que deseja as demais mulheres. Enfim, de que sua parceira não o preenche e que nem é tão especial em sua vida. A submissão, o medo da violência física faz com que a mulher não reaja a essas perdas. O condicionamento em mostrar fidelidade, eu diria canina, faz com que a mulher abra espaço para esse jogo. Quando diante do parceiro, “tímida” e “santa”, mal levanta o olhar para um outro homem. Passa a ideia de que ele, seu parceiro, é o único homem a quem ela é capaz de se entregar, amar. No ato sexual massageia o seu ego em detrimento de suas próprias necessidades de atenção, afeto, etc., não atendidas.
Mesmo que o homem não dê segurança e/ou satisfação afetiva/sexual, para a mulher, não é muito fácil para ela se compensar lá fora. Geralmente, quando se rebela contra esse tabu, tem como objetivo resgatar o seu prazer e sua auto-estima que estavam negligenciados, embora não seja esta a melhor forma de resolver a situação. Dificilmente, os homens aceitam a traição da companheira que, antes de qualquer coisa, os revela como fracassados no papel de marido. Para a mulher, se não é fácil aceitar o marido adúltero, pelo menos ela se permite ou é forçada a conviver com essa revelação.
O rótulo de mulher adúltera é tão forte que elas chegam ao consultório, pelo menos na minha experiência, se sentindo prostitutas. O adultério feminino quase sempre, apesar da tendência de ser menos frequente hoje em dia, se dá pelo envolvimento afetivo. Assim, elas se deixam possuir pelo sentimento da paixão para que seu desejo seja viabilizado, mesmo assim, não é raro algum sentimento de culpa.
De modo geral, as pessoas não aceitam suas limitações, sempre se acham mais dignas de parceiros mais qualificados em termos de prestígio profissional e nível social, etc. Têm a fantasia do “par perfeito” ou “alma gêmea”. Devido à permissividade social, não é preciso que a parceira esteja em falta com o marido para que esse se envolva em processo de traição. Para isso basta ter oportunidade. Um outro fator que colabora para esse comportamento, é que o sexo para o macho está dissociado do afeto. O que lhe permite transitar mais habilmente nas suas aventuras. Todo prazer que vier para ele é lucro, por isso investe com mais ousadia, e para a confirmação social de sua masculinidade. Caso não tenha sucesso, a mulher em casa dá conta de sua frustração.
Evidentemente, a percepção do ciúme como patológico não ignora um fato profundo a respeito do ciúme como importante defesa a uma ameaça real. O ciúme nem sempre é uma reação a uma infidelidade descoberta. Pode ser uma resposta antecipada aos direitos de posse para impedir que a infidelidade ocorra. Com bastante propriedade, Buss (2000) afirma: “Para etiquetar o ciúme como patológico simplesmente porque um cônjuge ainda não se desgarrou não leva em conta o fato de que o ciúme pode adiantar-se a uma infidelidade ainda emboscada no horizonte da relação” (p.21). Ou seja, são “leituras” sutis que sinalizam para a prática ou potencial de intenção de adultério do (a) parceiro (a).
O espectro da própria ou da infidelidade do outro raramente deixa de cercear a vida do casal, enquanto realidade ou desejos fantasiados. Gambaroff (1991) revela que “a infidelidade pode ser usada como defesa contra a fidelidade e esta, contra a infidelidade”(p.37). Assim, pode-se afirmar que a ansiedade envolvida nesses processos não se diferencia de maneira qualitativa, mas quanto à direção ou defesa que podem tomar. Atrás de rígidas reivindicações de fidelidade podem encontrar-se forte dependência às normas sociais, tendências de simbiose, medos de contato, incapacidade de auto-realização.
Ainda, segundo Gambaroff (idem), se por um lado, o desejo simbiótico pode se manifestar numa fidelidade exagerada, excessivamente apegada que persegue o outro; por outro lado, o medo fantasiado de uma fusão total com o parceiro é tão grande que pode levar à infidelidade, como recurso de segurança para se manter o controle da relação. Isso justifica as atitudes de sujeitos imaturos, associado ao abuso de poder, perversidade e mau caratismo. Enfim, o infiel foge da possibilidade de se colocar por inteiro na relação e, consequentemente, de arriscar-se nos conflito e confrontos da convivência diária. Logo, a infidelidade tem como função adiar ou evitar que o relacionamento se torne, sem sombra de dúvida, um encontro.
Historicamente, o casamento por amor, norteado pela igualdade dos gêneros, é um acontecimento recente. Não era nem sequer sonhado na Antiguidade e na Idade Média. No entender de Volkmar (apud GAMBAROFF, 1992), por mais estranho que pareça, o capitalismo e o amor se pertencem, e que o amor sexual individual somente surgiu a partir da formação da burguesia. A moral vitoriana, extremamente puritana, na realidade exigiu demais de ambos os parceiros, e os afunilou cada vez mais na estreiteza da família nuclear. No ponto de vista de Marcuse (apud GAMBAROFF, idem), a liberação política da sexualidade, que deveria servir para emancipação dos indivíduos, degenerou para um tipo de impedimento à liberdade individual. Comercializada pela mídia e louvada como produto, a sexualidade transformou-se numa variante de exigências de desempenho, que encontrou seu lugar até na vida intima das pessoas.
Ainda nessa perspectiva, Marcuse (1981), chama a atenção para o fato de que a passagem do mundo infeliz para o feliz passa pela erotização de tudo à nossa volta, não no sentido do sexo vulgar, mas da desvalorização da essência do mito. Do impulso vital do homem para a curiosidade e ligações de amor, amizade, e do conhecimento de si mesmo e do seu universo. Quase todo élan vital (grifo nosso) do homem é capturado pelo trabalho, o que torna cada vez mais impessoal seus relacionamentos, que o deixa ilhado no seu egoísmo, narcisismo e vendo outro como a um inimigo em potencial.
Finalmente, este momento que vivemos atualiza a afirmação de Hobbes (apud RIBEIRO, 1991), de que os homens são tão absolutamente iguais que, não sabendo o que o outro deseja, fazem suposições, entre as quais de vencê-lo. Assim a guerra se generaliza, num paradoxo em que “o amado não é apenas aquele que nos faz feliz, é também aquele que nos frustra e, por isso mesmo, nos equilibra” (NASIO, 2003, p.72).
REFERÊNCIAS
BRANDEN, Nathaniel. (2002). A psicologia do amor: o que é o amor, por que ele nasce, cresce e às vezes morre. 2. ed. Trad. Mônica Braga. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.
BUSS, David M. (2000). A paixão perigosa: Por que o ciúme é tão necessário quanto o amor e o sexo. Trad. Myriam Campello. Rio de Janeiro: Objetiva.
FREUD, Sigmund. (1922-1989). Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia e no homossexualismo. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago. v. 18.
GAMBAROFF, Marina. (1991). Utopia da fidelidade. Trad. E. Schultz. Porto Alegre: Artes Médicas.
GAMBAROFF, Marina. (1992). Indifelidade. In: G. P. Costa e G. Katz (Orgs.), Dinâmica das relações conjugais. Porto Alegre: Artes Médicas.
MARCUSE, Herbert. (1981). Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 8 ed. Trad. A. Cabral. Rio de Janeiro: Zahar.
MIRA Y LÓPEZ, E. (1947-1992). Quatro gigantes da alma: o medo, a ira, o amor e o dever. 15 ed. Trad. C. A. Lima. Rio de Janeiro: Olympio.
NASIO, Juan-David. (2003). Um psicanalista no divã. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Zahar.
RIBEIRO, Renato J. (1991). Hobbes: o medo e a esperança. In: F. C. Weffort (Org.). Os clássicos da política. São Paulo: Ática.