A Infância de Baco
Nonnos, a quem é preciso sempre recorrer, quando se trata de Baco, assim narra a maneira pela qual se passaram os anos da sua infância: "A deusa criou-o, e, bem mocinho ainda, o fez montar no carro puxado por ferozes leões... Aos nove anos, já possuído da paixão da caça, ultrapassa na corrida as lebres; com a sua mãozinha, dominava o vigor dos veados malhados; trazia sobre o ombro o tigre intrépido de pele malhada, livre de qualquer laço, e mostrava a Réa nas mãos os filhotes que acabara de arrancar ao leite abundante da mãe; depois, arrastava terríveis leões vivos; e, fechando-lhes entre os punhos os pés reunidos, dava-os de presente à mãe dos deuses, a fim de que ela os mandasse atrelar ao seu carro. Réa observava sorrindo e admirava tal coragem e tais feitos do jovem deus, ao passo que à vista do filho vencedor de formidáveis leões, os olhos paternais de Júpiter irradiavam maior alegria ainda.
Baco, mal ultrapassou o limite da infância, revestiu-se de suaves peles, e ornou os ombros com o envoltório malhado de um veado, imitando as variadas manchas da esfera celeste. Reuniu linces nos seus estábulos da planície da Frígia, e atrelou ao seu carro panteras, honrando a imagem cintilante da morada dos seus maiores. Foi assim que, desde cedo, desenvolveu o gosto montanhês ao pé de Réa, amiga das elevadas colinas; nos picos, os pãs rodeiam nos seus giros o jovem deus, também hábil dançarino; atravessam barrancos com os seus pés peludos, e, celebrando Baco nos seus tremendos saltos, fazem ressoar o chão debaixo dos seus pés de bode." (Nonnos).
Baco e Ampelos
Quando Baco estava na Ásia Menor, banhando-se com os sátiros nas águas do Pactolo e brincando com eles nas costas da Frígia, ligou-se da mais estreita amizade com um jovem sátiro chamado Ampelos. Em breve, tornaram-se inseparáveis; mas um touro furioso matou um dia o infeliz Ampelos, e Baco, não podendo consolar-se, derramou ambrósia nos ferimentos do amigo que foi metamorfoseado em vinha, e é precisamente esse divino suco que deu à uva a qualidade embriagadora. (Nonnos).
Baco, realmente, colheu um cacho de uvas e, espremendo o suco, disse: "Amigo, a partir deste instante serás o remédio mais poderoso contra as dores humanas."
Foi então que Baco começou a percorrer o Oriente: no Egito, vemo-lo em relação a Proteu; na Síria, luta contra Damasco, que se opõe à introdução da cultura da vinha. Vencedor, continua a viagem, atravessa os rios sobre um tigre, lança uma ponte sobre o Eufrates, e empreende a gigantesca expedição contra os indianos.
A Conquista da Índia
A lenda heróica de Baco parece ser apenas a história da plantação da vinha, e a narração dos efeitos produzidos pela embriaguez, desde que o vinho se tornou conhecido. O temor desses terríveis efeitos explica naturalmente a oposição que se lhe depara por toda parte, quando ensina aos homens o uso do vinho por ele personificado.
O culto de Baco apresenta grandes relações com o de Cíbele, e o caráter ruidoso das suas orgias relembra a algazarra que se fazia em homenagem à deusa. Mas a história da conquista da Índia dá às tradições em torno de Baco um caráter especialíssimo. Segundo vários mitólogos, as narrações que a isso se prendem só se teriam popularizado após a conquista de Alexandre. Creuzer considera, pelo contrário, essa história bastante antiga.
Nessa expedição memorável, as ninfas, os rios e Sileno, sempre montado no seu burro, formavam o cortejo particular do deus, mas o cortejo era engrossado por numeroso bando de pãs, de faunos, de sátiros, de Curetes e de seres estranhos, dos quais nos dá Nonnos uma nomenclatura pormenorizada no seu poema das Dionisíacas. Toda essa narração apresenta caráter fantástico e maravilhoso. Quando o rei da Índia, Deríades, quis atirar-se contra Baco, uns pâmpanos que brotavam da terra lhe enlaçaram subitamente os membros e lhe paralisaram os esforços: quando o exército do deus se encontra nas margens de um rio, o rio se transforma em vinho, a um sinal do deus, e os indianos sedentos que pretendem beber são imediatamente tomados por um delírio desconhecido.
"A voz do indiano, diz Nonnos, os seus negros compatriotas acorrem em multidão às margens do rio de suave perfume. Um, firmando ambos os pés no limo, mergulhado até o umbigo nas vagas que o banham por toda parte, se mostra semi-inclinado, peito recurvado sobre a corrente, e dali sorve, no oco das mãos, a água que destila o mel. Outro, perto da embocadura, possuído de ardente sede, mergulha a longa barba nas ondas purpurinas, e, estendendo-se sobre o chão da margem, aspira profundamente o orvalho de Baco. Este, debruçado, aproxima-se da fonte tão vizinha, apoia os braços na areia úmida, e recebe nos lábios sedentos o fluxo do licor que mais sede ainda lhe dá. Os que só tem à mão o fundo do pote quebrado, retiram o vinho com uma concha. Grande número bebe na torrente vermelha, e enche as taças rústicas dos pastores dos campos.
Após assim sorverem o vinho à vontade, vêem as pedras duplicar-se, e julgam que a água se escoa por dois lados; entretanto, o rio continua a murmurar no seu curso e a fazer ferver uma à outra as vagas da deliciosa bebida. Uma torrente de embriaguez inunda o inimigo. Este extermina a raça dos bois, como se estivesse ceifando a geração dos sátiros. Aquele persegue os bandos de veados de cabeças alongadas, e julga-os, em virtude da sua pele simetricamente manchada, o bando dos bacantes, enganado pelas nébridas elegantes com que elas se adornam. Um guerreiro, dando altos brados, agarra-se a uma árvore que ele golpeia de todos os lados, e, percebendo que os ramos ondulam movidos pelo vento, abate as pontas dos ramos mais tenros, e fende assim a folhagem de copado carvalho, julgando estar a cortar com o gládio a intacta cabeleira de Baco. Luta contra a folhagem e não contra os sátiros; e na sua alegria imbecil, conquista contra a sombra uma sombra de vitória.
Outros indianos, irresistivelmente transportados pelos vapores que entontecem o espírito, imitam com os gládios, as lanças e os capacetes, os júbilos guerreiros dos Coribantes, e na sua dança das armas batem em torno os escudos. Um se deixa levar pelos cantos da musa báquica, e salta como nos coros dos sátiros; outro se enternece com o som do tamborim, e no seu gosto impelido ao delírio pelo sonoro ruído, atira ao vento a aljava inútil."
Baco em Tebas
Após percorrer a Ásia, Baco, que nascera em Tebas, quis também que esta cidade fosse a primeira da Grécia e conhecer-lhe o culto: disso é que lhe provém o nome de Baco tebano.
No começo da tragédia das bacantes, de Eurípedes, Baco dá a conhecer a sua encarnação e a sua chegada a Tebas. "Eis-me nesta terra dos tebanos, eu, Baco, gerado pela filha de Cadmo, Semele, após ser visitada pelo fogo dos raios; deixei a forma divina por outra mortal e venho visitar a fonte de Dirce e as águas de Ismenos. Vejo perto deste palácio o túmulo de minha mãe atingida pelo raio, e as ruínas fumegantes de sua morada, e a chama do fogo celeste ainda viva, eterna vingança de Juno contra minha mãe. Aprovo a piedade de Cadmo, que, tornando este lugar inacessível aos pés dos profanos, o consagrou à filha; e eu o sombreei por toda parte de pâmpanos verdejantes. Deixei os vales da Lídia, onde abunda o ouro, e os campos dos frígios; atravessei as planícies ardentes da Pérsia e as cidades da Bactriana, a Média coberta de pedras e a feliz Arábia, e a Ásia inteira, cujo mar salgado banha as margens cobertas de cidades florescentes, povoadas simultaneamente por uma mistura de gregos e de bárbaros, e é essa a primeira cidade grega em que entrei após ter conduzido para lá as danças sagradas e celebrado os meus mistérios, para manifestar a minha divindade aos mortais. Tebas é a primeira cidade da Grécia em que fiz ouvir os brados das bacantes cobertas de nébrida e armadas do tirso envolto em hera."
Baco e Licurgo
Baco, tendo levado o seu culto à Trácia, foi perseguido pelo rei do país, chamado Licurgo., o qual muito provavelmente assustado pelos efeitos da embriaguez, mandara fossem arrancadas todas as vinhas. Baco viu-se obrigado, para salvar-se, a atirar-se ao mar, onde foi acolhido por Tétis, a quem deu, como recompensa pela hospitalidade, uma taça de ouro feita por Vulcano. Todas as bacantes e os sátiros que o haviam acompanhado foram lançados à prisão. Foi por castigo a tal feito que a região se viu atingida de esterilidade, e Licurgo, enlouquecido, matou pessoalmente seu próprio filho Drias. Tendo o oráculo declarado que o país só recobraria a fertilidade, depois de morto o rei ímpio, os súditos o encadearam ao monte Pangeu, e ali o pisaram com os cavalos. As bacantes livres, ensinaram os mistérios do novo deus à Trácia. A luta entre Baco e Licurgo está representada com diversas variantes nos monumentos antigos.
Baco e Perseu
A lenda de Baco, atirado ao mar e recolhido por Tétis a quem oferece uma taça de ouro, prende-se, segundo Ateneu, ao fabrico do vinho e traduz mitologicamente o hábito existente em certas regiões de se servir da água do mar para acelerar a fermentação da uva.
Em Argos, onde Juno era especialmente honrada, o culto de Baco encontrou graves dificuldades para se estabelecer. Os habitantes recusaram-se a honrá-lo, e mataram as bacantes que o acompanhavam. O deus feriu de loucura furiosa as mães, que começaram a dilacerar os próprios filhos. O herói Perseu, protetor de Argos, decidiu então combater Baco, e segundo um vaso grego, em que a cena está figurada, não parece ter tido vantagem. Entretanto, segundo outras tradições, teria sido vencedor e teria até lançado Baco ao lago de Lerna. Pausânias diz simplesmente que, quando a disputa terminou, Baco foi honrado em Argos, onde se lhe ergueu um templo.
Cita Creuzer uma vaso cujo tema consagra a introdução da vinha na Etólia. "Vemos ali, diz ele, Altéia, mulher rei de Calidon, conversando com Dionisos por ela apaixonado, do alto de uma janela, onde também no-la mostra uma pintura que completa esta, e que oferece o deus adormecido diante da porta, cujo limiar acaba de ser cruzado pelo marido que lhe cede o lugar. Sabe-se que, como preço de tal complacência, recebeu o presente da vinha, e que Altéia teve de Baco a famosa Dejanira, esposa de Hércules, como teve de Marte o herói Meleagro."
Baco e Erígone
Foi no reinado de Padião, filho de Erecteu, rei de Atenas, que Baco, acompanhado de Ceres, visitou pela primeira vez a Ática. Esse incidente mitológico tem certa importância na história, para mostrar que na opinião dos atenienses o cultivo da vinha e do trigo foi precedido no país pelo da oliveira, que Minerva lhes ensinara no mesmo instante da fundação da cidade.
Baco, chegado, foi à casa de um ateniense chamado Icário, que o recebeu muito bem; como recompensa pela hospitalidade Baco lhe ensinou a maneira de fazer vinho. Icário, fazendo-o, quis que o provassem os camponeses da redondeza, que o acharam delicioso. Mas embriagaram-se completamente, e, julgando que Icário os havia envenenado, atiraram-no a um poço. A visita de Baco a Icário está figurada em vários baixos-relevos.
Tinha Icário uma filha de extrema beleza, chamada Erígone, por quem Baco se apaixonou. A fim de unir-se a ela, metamorfoseou-se em cachos de uvas, e quando a jovem o percebeu sob tal forma, apressou-se em colhê-lo e comê-lo; foi assim que se tornou esposa do deus, de quem teve um filho chamado Estáfilos, cujo nome significa uva. Foi ele que, mais tarde, ensinou aos homens que, misturando-se água ao divino licor, este não mais produzia a embriaguez.
Quando Icário foi morto, Erígone nada sabia do que se passara, mas inquieta por não o ver regressar, tratou de procurá-lo e não tardou em ser atraída pelos uivos da pequenina cachorra Moera, que chorava ao pé do poço a que Icário fora atirado. Quando Erígone soube o que sucedera ao infeliz pai, foi tal o seu desespero que se enforcou. Baco, encolerizado, enviou aos atenienses um delírio furioso que os levou a se enforcarem no mesmo lugar em que haviam morrido Icário e a filha. O oráculo, consultado, consultado, respondeu que o mal cessaria quando tivessem sido punidos os culpados e prestadas homenagens às vítimas. Júpiter colocou Icário entre os astros e dele fez a constelação de Bootes. Erígone tornou-se a da Virgem, e a cachorra Moera passou a ser a da Canícula. Todas essas tradições se prendem à introdução do cultivo da vinha na Ática, e aos efeitos imprevistos da embriaguez. O sono de Erígone foi frequentemente representado; Girodet fez dele o tema de uma das suas composições mais graciosas.