“As crianças são menos ingênuas do que pensamos, ou que fingem ser.
Sabem, mesmo que obscuramente, de onde vem o perigo.
Preparam-se para ele, protegem-se dele como podem, contra os outros, contra si mesmas.
Nossa sociedade não lhes facilita essa tarefa, bombardeando-as com sexo e violência.
Um motivo a mais para protegê-las mais intensamente” (Comte-Sponville).
O mundo embora não tenha evoluído muito em termos de humanização, e nesse sentido ainda está preso a preconceitos e tabus que se contradizem com a pós-modernidade, porém avançou espetacularmente na tecnologia e na informática. As novas gerações estão bem inseridas neste contexto, por isso tem habilidade para lidar com as geringonças ultramodernas extasiadas pelo fetichismo tecnológico. Segundo Dean (cit. por Bauman, 2008, p.119), “o paradoxo do fetiche tecnológico é que a tecnologia que age em nosso lugar realmente nos habilita a permanecer politicamente passivos”. Essa afirmativa não cabe integralmente ao Brasil, pois o povo brasileiro, na sua maioria jovem, tem ido para ruas protestar os desmandos políticos.
Mas esse fenômeno tecno/informático, sem dúvida, se reflete intensamente na maneira de pensar e agir das crianças e adolescentes, em particular em relação às meninas. Já não se percebe inocência no semblante infantil, e o modo de se vestirem e de se maquiarem as deixam com aspecto de mulheres em miniatura. Por vezes envelhecidas, sem nenhum viço de jovialidade como mulheres mal nutridas que acabaram de ter já filhos. Que tipo de adulto serão no futuro? Verdadeiros ciborgs ou homens lights? Para Rojas (s/d.a, p.58 - grifos nossos), “o homem light é um homem vazio, só lhe interessa o dinheiro, o poder, o êxito, a fama, viver bem sem restrições e estar nos sítios - lugares - e nos ambientes da moda”. Enfim, as crianças de hoje parecem programadas para consumo dos prazeres imediatos dissociados de aspecto sentimental.
Na concepção de Comte-Sponville (2009, p.30 - grifo do autor), “a infância é um milagre e uma catástrofe. Um milagre, porque nela vivemos apenas o inédito, o improvável, o inexplicável - apenas o novo. Uma catástrofe, porque é preciso sair dela e não conseguimos”. Na contra do que se queixa esse autor, agora se abandona facilmente a infância, quase já não existe por conta de uma violenta queima de etapas, especificamente o gênero feminino que querer pular da meninice para a fase jovem adulta. Pesquisa mostra que menos de 20% das crianças costuma brincar ao ar livre, a maioria das meninas de dez anos é obcecada por maquiagem, moda e estilo de cabelo; 26% são obcecadas com o peso corporal e se sentem mais gordas do que gostariam (Reitemeier cit. por Bauman, 2011). A inglesa Georgie Swann ilustra esse quadro:
Swann lê duas revistas de moda por semana e passa horas no quarto experimentando suas roupas favoritas, e sua enorme coleção de sapatos e bolsas. Adora maquiagem e possui mais de vinte batons. Está economizando dinheiro para fazer um implante de silicone nos seios, com apenas dez anos de idade mal pode esperar para realizar essa cirurgia tão sonhada (Appleyard cit. por Bauman, 2011).
A fala da atriz mirim brasileira Klara Castanho, de apenas 11 anos de idade, com aspectos subjetivos também chama a atenção para essa precocidade, que não parece ter motivo algum para riso, mas, do contrário, para preocupação, uma pré-adolescente com este nível de reação crítica:
“Gosto de ser chamada para interpretar crianças boas [...]. Mas, tenho que confessar, ser sempre boazinha é muito chato! (risos)” (Castanho, 2012).
Certamente para não se indispor com o mercado da dramaturgia, ou seja, para não correr o risco de ser esquecida, com bastante esperteza deixa em aberto, mesmo sem gostar dos papéis de boazinha, a possibilidade de ser convidada para vivenciá-los. Assim, esta sua afirmativa soa contraditória:
“[...] esses papéis são muito difíceis, pois com eles, você percebe se o público te aprova” (Castanho, 2012).
A construção de uma personagem boazinha, a priori, seria mais fácil, uma vez que, supostamente, faz parte da natureza infantil, em especial da decantada doçura feminina. Acredita-se que a audiência tenha uma pré-disposição para aceitar esse tipo de personagem desempenhado por ator mirim, sobretudo quando tem, a exemplo da própria Castanho, talento. Mas a atriz considera esse papel como prova de fogo para a aceitação do seu trabalho, deixa implícito que a personagem não boazinha já entra com a vantagem de ser susceptível ao gosto do telespectador. Então o público seria perverso ou sádico com uma afeição tão aflorado por esse tipo de personagem? A jovenzinha acrescenta:
“Não existe ninguém que seja bom o tempo todo” (Castanho, 2012).
Ser “bom o tempo todo” sugere algo forçado, além de piegas ou até mesmo insuportável. Mas tem gente que pauta sua conduta no bom senso, sim, mesmo que temporariamente possa se desviar do seu modo habitual de ser. Porém, não faz isso à toa, ao seu bel prazer ou porque se cansou de ser boazinha, mas devido às circunstâncias, talvez como defesa. Entretanto, isso não quer dizer que deixou de ser o que sempre fora: essencialmente boa. É assustadora essa observação porque se espera encontrar nas garotas, devido à sua imaturidade, uma visão do mundo, no mínimo, meio cor de rosa. De certo, a precocidade da atriz a instiga aos desafios, no caso, fazer papéis de vilãs:
“Viver um personagem malvado é uma das melhores oportunidades para provar se você pode continuar ou deve desistir da profissão” (Castanho, 2012).
Isso porque há vilães memoráveis que, pela excelência do desempenho do ator, suas maldades são ofuscadas ou servem ao telespectador como catarses, e quando isso acontece o ator ganha destaques consideráveis. Parece que Castanho ambiciona por isso. Porém, em todas as entrevistas essa atriz sempre se mostrou muito segura dessa sua vocação. Tem no seu currículo uma média de seis telenovelas, apesar de tão jovem conquistou um privilegiado espaço profissional, e é bem conhecida no cenário nacional.
Esse discurso é contundente não pelo fato de ser uma estrelinha precoce de televisão, mas porque, de modo geral, parece familiar ao universo das crianças, púberes e pré-adolescentes anônimos. Bianca1 uma garota portuguesa, de nove anos de idade, sardenta, de voz grave contrastando com seu rosto angelical, também reforça essa mentalidade. Até então só a conhecia de vista, a mesma adentrou a sala da sua vizinha, na qual estávamos eu e duas senhoras, mãe e filha, e disse:
“Eu quero ser atriz de cinema e escritora, participo do teatro da escola. Vou fazer mímicas para vocês descobrirem que animal é” (Bianca, 2013).
Parecia tomada por essa intenção, praticamente desfilou com suas desinibidas imitações - a maioria fiel ou quase idêntica -, um zoológico inteiro. Logo em seguida, deixando essa brincadeira inocente de lado, começou a caminhar, com gestos masculinizados e autoritários, ponta a ponta de uma reta imaginária, e exclamou:
“Sou um rapaz. Gosto de me assumir rapaz” (Bianca, 2013).
Esse salto brusco de um conteúdo lúdico para tais expressões pareceu muito forte. Naquele palco em que a pequena sala se transformara fiquei na posição de espectador e, ao mesmo tempo, de avaliador, entre textos subjetivos tentando tomar corpo na banalidade cotidiana de uma menina franzina que desejava ser atriz tanto quanto ser rapaz. Sigmund Freud, o pai da psicanálise, assegura o sentimento de castração e a inveja do pênis por parte da mulher. Mas alguns autores entendem um pouco diferente essa convicção freudiana, de que a mulher não teria necessariamente inveja do pênis, mas do poder do homem, dos benéficos e privilégios sociais que lhe outorga esse órgão. Certamente, a trama de Bianca não tratava de confusão de identidade, mas, talvez, inveja, não de ser um menino, mas o que o ser menino representa em termos de poder, vantagens e liberdade comparada à menina. Parei com essas elucubrações, e a provoquei: o que as pessoas irão pensar de você se comportando assim como um rapazinho? Passando uma mão na outra, como sinal de descaso, e ainda mais enfática, batendo no peito, respondeu:
“Não estou nem aí!!! Não pense que por trás desse rostinho de anjo tem uma criança, não! Tenho um demônio dentro de mim, um diabinho que é muito ruim, eu sou ruim, detesto ser boazinha. Gosto de fazer maldades” (Bianca, 2013).
Agora já não dava mais para saber se isso estava num script que guiava suas falas e encenações ou a sardentinha revelava partes do seu eu perverso? Mas, de tão orgânica em suas manifestações, sem nenhum engasgo, lapso ou contradição, me convenci da sua apropriação dessa dramaticidade para expressar a si mesma. Em décadas passadas crianças não falavam em diabo, tinham medo, muito menos de dizer que o chifrudo estivesse dentro delas ou que elas próprias fossem o demônio em pessoa. Faziam questão de pertencer ao sagrado, embora endiabradas, de parecerem anjinhos. O sonho de toda criança era ser anjo na procissão, na data comemorativa de qualquer santo, as mães não perdiam a oportunidade de caracterizar seus “anjinhos do pau oco”.
Diante dessa garota hiperativa me perguntava se a escola não mais consegue dá conta dessa energia e inquietações, ou, pelo menos, desgastá-la. Passara quase o dia inteiro na escola, já era final de tarde, e ainda estava “elétrica”. Uma das senhoras diz que sou psicólogo, de repente, como se tivesse desligado um liquidificador, Bianca fica serena e me pergunta:
“Por que não consigo ficar sozinha? Só vou ao banheiro com minha mãe, e na escola só vou com minhas amigas”(Bianca, 2013).
Falei que não sabia, era ela quem devia saber, se perguntar. Que aquilo era uma consulta que teria de me pagar, balançando a cabeça confirmando o “trato”, em seguida disse que me pagaria com um refrigerante, e desabafou:
“Meu irmão, de 17 anos de idade, me obrigava a ver filme de terror, e me fazia medo com a história da 'mulher sangrenta' que sai com uma faca ferindo todo mundo que encontra no seu caminho” (Bianca, 2013).
Disse-lhe que esse poderia ser um dos prováveis motivos. Nesta altura, para alívio das senhoras presentes que faziam gestos de desaprovação nas suas costas, sua mãe lhe chama, ela sai correndo, me deixando envolto nessas reflexões: o quanto as crianças estão sendo mudadas ou mudando sem a menor consideração pela sua faixa etária e sua condição emocional! Também chama a atenção o fato de Bianca ser consciente da sua dificuldade e de querer encontrar uma solução, algum tipo de ajuda, uma vez que rapidamente cessou suas representações para, atentamente, me ouvir. Parece existir um imperativo de que a criança, o quanto antes, deve se tornar adulta. Assim, apesar da independência e da excelente articulação, essas crianças potencializam o que Winnicott chama de “falso self” que, em síntese, o autor assim descreve:
“Somente o self verdadeiro pode se sentir real, mas o self verdadeiro não deve nunca ser afetado pela realidade externa, não deve nunca se submeter. Quando o falso self se vê usado e tratado como real há um crescente sentimento de futilidade e desespero por parte do individuo”(Winnicott, 1988, p.122).
Essa fixação na moda, em futilidade incrementada pelo consumo, bem como o desejo de ser atriz não seria consequentes desse falso self? Não que ser atriz seja fútil, mas que oportuniza o contato com os deuses e os demônios latentes. Outro dado que merece destaque é que essa garota não faz parte do meu circulado de amizades, no entanto, ao passo que evoluía em suas representações, se lançava para cima de mim e me abraçava. As senhoras, alguns vezes, quase que em coro falavam para ela me deixar em paz. Não sei até que onde minha atenção e curiosidade foram interpretadas como confiança de modo a deixá-la tão à vontade ou se esse desembaraço faz parte do seu jeito desinibido de ser?
O desejo de Bianca de ser rapaz seria a fantasia de que assim teria mais contato com o pai devido à ausência causada pela separação da sua mãe, uma vez que seu irmão não lhe legitimava feminina por representar um masculino amedrontador? O desejo de ser atriz e o fato de se dizer ruim seria decorrente dos medos introjetados por meio dos filmes de terror que era obrigada a assisti-los? Essa hipótese, se confirmada, dá subsídio para tese de que o agressor foi vítima do mesmo tipo de agressão que pratica. Diria que pode haver uma tendência para ocorrer, mas que não é determinante. Ou ainda, o desejo de ser rapaz, que é ser mais forte do que menino, não seria, na verdade, uma necessidade de se igualar em força para se defender da perversidade do irmão?
Absorvido nas fantasmagorias ou verdades desse teatro espontâneo, a minha figura era de espectador assexuado, porém os insistentes alertas das senhoras me fizeram lembrar a diferença de gênero. Antes as meninas somente se aproximavam de um homem se tivesse parentesco ou fosse muito conhecido, amigo próximo da sua família. Cuidado com estranho por causa de tarado, essa era uma das teclas mais doutrinária para as meninas. Mas, contraditoriamente, cerca de 7% dos estupradores são parentes e a violência ocorre na casa da vítima (Alvarenga, 2010). Será que por causa dessa falta de medo, junto ao fato que se vestem como adultas e cada vez mais precocemente parecem “meninas-mulheres”2, as garotas estão sendo atualmente, com mais freqüência, vítimas de pedofilia?
A influência desses novos tempos é inevitável, todavia, consiste numa irresponsabilidade deixar a criança exposta sem nenhum critério. Alguns pais parecem ansiosos de torná-las independentes, autônomas, para se sentirem alforriados das responsabilidades paternas.Mas será que os pais não indo longe demais privando as crianças de vivenciarem naturalmente aspectos salutares ao seu desenvolvimento emocional e psicológico que dificilmente serão recuperados, para atenderem as demandas consumo? Alguns instigam seus filhos muitas vezes passando por cima dos seus desejos e dos seus limites, com aspirações irrealistas, na expectativa de que possam se concretizar, transformando em ricos e famosos (James cit. por Bauman, 2013). Agora a criança é vista como fundo de investimento ou poupança que, independente do seu potencial, tem que dá lucro. Na verdade,
“para ser moral você precisa adquirir bens; para adquirir bens, precisa de dinheiro; para adquirir dinheiro, preciosa vender-se – a um bom preço e com um lucro decente. Você não pode ser um comprador a menos que se torne uma mercadoria que pessoas desejem comprar. Por conseguinte, o que você precisa é de uma identidade atraente, vendável” (Bauman, 2013, p.103).
Ninguém pode fugir dessa realidade, mas essas meninas estão se colocando precocemente no mercado e/ou nas relações na condição de objetos de desejo, o que providencialmente deve ser evitado para que futuramente, em virtude disso, não paguem um preço tão alto.
Finalmente, Georgie, Klara e Bianca podem mudar de comportamento e opinião, mas não deixa de ser surpreendente o modo decidido e cru de como se comportam. Uma criança esperta, dinâmica - e não ansiosa ou hiperativa -, inteligente, é estimulante nas suas interações, mas quando exagera perde a graça que a inocência promove. Segundo Rojas (s/d.b, p.101), “não se pode viver sem ilusões”, ou seja, se precisa das ilusões para que a vida não se torne um fardo.
Muito do que essas crianças ganham em precocidade podem perder pela pouca para capacidade de resiliência que as deixam vazias ou as levam a se refugiarem num falso self. Assim, mais tarde poderão recorrer a/s droga/s para suportar a existência por “se afogarem na inundação de imagens para as quais não têm maturidade emocional” (Reitemeier cit. por Bauman, 2011, p.71). É sabido que as meninas, desde cedo, saem na frente em tudo que diz respeito à vida afetiva e relacional (Comte-Sponville, 2009), mas, certamente, não devem ser superestimuladas a ponto de sacrificarem sua infância.
Palavras relacionadas: adultização, adultificação, amadurecimento precoce
Notas:
1. Nome fictício.
2. Expressão usada por Bauman (2011, p.67).
Referências
Alvarenga, G. (2010). Conheça o Estuprador. Recuperado em 7 setembro, 2013, de http://www.galenoalvarenga.com.br/artigos/conheca-o-estuprador
Bauman, Z. (2008). Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Bauman, Z. (2011). 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Bauman, Z. (2013). Danos colaterais: desigualdades sociais numa era global. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Castanho, K. (2012). Boca no Trombone. Recuperado em 23 setembro, 2012, de http://entretenimento.br.msn.com/famosos/boca-no-trombone-365#image=20
Comte-Sponville, A. (2009). A vida humana. (2a tiragem). São Paulo: Martins Fontes.
Rojas, E. [s/d.a]. A conquistada vontade: como conseguir o que projetamos. Coimbra: Gráfica de Coimbra.
Rojas, E. [s/d.b]. O homem light: uma vida sem valores. (Reinpressão). Coimbra: Gráfica de Coimbra 2.
Winnicott, D. W. (1988). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. (2ª ed.). Porto Alegre: Artes Médicas.